Tergiversando sobre a vontade popular

As recentes manifestações populares no Brasil tiveram as mais variadas interpretações. Todavia, uma delas obteve o consenso em todos os setores da sociedade: existe uma gritante desconexão entre os políticos e a população. Por mais que a democracia esteja consolidada, nossas instituições parecem ficar devendo em termos de representatividade. E muitos do que respondem por elas custam a reconhecer esse distanciamento.

Tal constatação já é preocupante em si mesma. Porém, sua gravidade aumenta ainda mais na medida em que, poucos dias depois dos protestos, tudo está voltando para a empoeirada normalidade. O grito dos que foram às ruas parece não ter chegado aos ouvidos de determinados setores da política. E as piores práticas continuam como se nada tivesse acontecido. Sem horizonte de mudança, sem perspectiva de reforma, sem mea culpa, sem uma cívica vontade de melhorar o país.

Fatos dos últimos dias reforçam essa constatação. Setores do Congresso Nacional ameaçaram votar contra os interesses do governo nos próximos projetos a serem apreciados. Tal articulação seria até plausível, do ponto de vista parlamentar, se o interesse de fundo fosse elevado. Porém, o que motivou esse endurecimento não foram as vozes das ruas, as angústias do povo ou a vontade de mudança. Não. O que um considerável grupo quer é apenas e tão-somente a liberação de suas emendas individuais. Trata-se de um pequeno quinhão do orçamento que tem implicação imediata no próprio projeto de reeleição.

Encosto outro fato, corolário do primeiro, a demonstrar a permanência das contradições. A pressão de parlamentares para a liberação de suas emendas foi aceita pelo governo. O Planalto autorizou a liberação de R$ 6 bilhões, em três parcelas de R$ 2 bilhões, para atender a essa sede de verbas. Ou seja: capitulou, entrou no jogo, abriu a torneira! Isso não é novidade, senão que uma prática repetida há décadas no Brasil. Todavia, era ao menos desejável uma revisão à luz do novo ambiente político que sobreveio da insatisfação popular. Mas o jogo de barganha se manteve. Idem para o interesse individual, paroquial, eleitoreiro. O fisiologismo e o clientelismo de igual modo.

Por fim, um terceiro exemplo do divórcio que permanece entre representantes e representados. A nova comissão montada na Câmara dos Deputados para tratar de reforma política está em vias de apresentar um monstrengo capaz de transformar nosso sistema em algo ainda pior do que é hoje. A condução dessa pauta também está sendo motivada por interesses menores. É risível imaginar que, com o financiamento público das campanhas, teremos uma mudança da realidade. Pelo contrário, ela tende a piorar ainda mais.

As demais propostas também são ínfimas. Tratam de mera perfumaria. E quase nenhuma vem para a qualificação da política. É o caso da dispensa de recibo, por parte das candidaturas, para comprovar doações eleitorais. Ou de permitir que políticos com contas rejeitadas possam se candidatar. Ou ainda de autorizar o uso de recursos do Fundo Partidário para pagar multas impostas pela Justiça Eleitoral. O que importa tudo isso? A que interesses serve? Para quem irá melhorar a situação?

O pessimismo é um vício que não está em minha natureza. Porém, não se pode ser tolo neste momento tão grave e delicado da nação brasileira. E não farei coro a qualquer tentativa de vender ilusões. Os fatos exemplificados mostram que uma significativa parcela dos legítimos representantes da população parecem imunes aos clamores dela mesma. Além de incapacidade de interpretar o que quer a sociedade, usam o momento para tergiversações.

Quem está vendo tamanha afronta não pode baixar a guarda. Isso vale para formadores de opinião, líderes de expressão, movimentos sociais, jornalistas, intelectuais e tantos parlamentares bem-intencionados que temos em nosso meio. O caminho para melhorar a política continua sendo ela mesma – a própria política. E tudo dentro da civilidade. Mas isso não significa legitimar despropósitos e enganações. É preciso reconectar nossas instituições e alguns de seus representantes com o povo brasileiro.

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