O mensalão para além dos autos

A ética tem pelo menos duas dimensões: a individual e a formal. A individual diz respeito ao elenco de valores de cada pessoa. Trata de suas escolhas, do caráter, da postura diante dos outros. E tudo isso independente de leis, normas ou códigos. Já a ética formal é justamente esse conjunto de regras levadas a termo, escritas, institucionalizadas, acordadas num diploma. A segunda precisa prestigiar a primeira. Isto é: o ordenamento jurídico deve promover as práticas e as pessoas que aderem a condutas corretas.
O julgamento do mensalão explicita a desordem dessas duas dinâmicas em nosso país. Os desvios pessoais são evidentes. Mas, para além dos fatos e dos indivíduos – dos autos do processo –, é preciso constatar e recolher lições sobre as contradições dos nossos sistemas institucionais estruturantes. Esse escândalo não desculpa quem cometeu ilicitudes, mas reforça a necessidade de reformar muitas das nossas regras constitucionais.
De tudo o que se descortina, destaca-se a perniciosa relação entre os poderes Executivo e Legislativo. Em nosso país, a maioria parlamentar é constituída depois de eleito o governo, e não o contrário – o que acontece em sistemas mais equilibrados. Como não nasceu de uma identidade orgânica, o apoio dessa base parlamentar precisa ser mantido cotidianamente. Sem ela, não se governa. E aí está aberta a porteira para muitos vícios.
As emendas individuais são a ferramenta mais convencional nesse contexto: é uma espécie de tento curto que o governo puxa sempre que alguém o desobedece. Votou a favor, libera emendas. Votou contra, retém. E isso não é uma prática deste ou daquele governo, mas de todos que aí estiveram nas últimas décadas. É, na verdade, uma ação legitimada pelo nosso próprio ordenamento. Este é o ponto: é a ética formal trabalhando contra a individual, na medida em que estimula o parlamentar e o governo nessa direção.
Além disso, como se viu no mensalão, também são usados artifícios ainda mais espúrios. Mas tudo reforça uma mesma lógica de excessiva concentração de poder no Executivo, de desprestígio e dependência do Legislativo, de um sistema partidário sem conexão com a sociedade, de um sistema eleitoral que facilita a criação de grupos de interesse e da ausência de um sistema de controles que mantenha a independência de cada esfera e estimule a fiscalização mútua.
Estamos diante de mais uma oportunidade para fazer uma grande autoanálise nacional, que nos tire do conformismo político e institucional em que nos encontrarmos e nos transporte para um ímpeto de mudança. Não para o quiçá do amanhã, do depois ou do “quando der”, mas para hoje, para agora. Vivemos um período de conformismo e acomodação – algo compreensível diante do momento econômico positivo dos últimos anos. Mas ainda há muito por ser mudado e reformado, e o julgamento do mensalão novamente mostra isso. Para além de questões partidárias ou processuais, o Brasil deve recolher lições que o façam melhorar as instituições e suas regras. É um caminho que precisamos reencontrar com urgência.

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