Passado, presente e futuro

“do outro lado da vida, o fim de tarde passa, lento, como as gotas que o rio perde sempre para o mar”. Jorge Pimenta, fragmento de Itinerário de papel para certezas transitórias.

Tive contato com este poema do poeta luso Jorge Pimenta, em seu espaço virtual, onde também postou uma fotografia de sua autoria. Na imagem duas cadeiras em frente ao mar, que me remeteram de imediato ao design de Mies Van der Rohe (Bauhaus), no entanto com redução às formas elementares, à simetria do neoplasticismo de Mondrian e Doesburg, numa nítida releitura e reedição das escolas num uso contemporâneo. O passado se cumprindo no presente; em contraste com o Mar que foi, é, e será todos os tempos na mesma água, praticamente o dono da cronologia e seus movimentos.

A partir daí, refleti sobre a transitoriedade. Penso no tempo presente, como um “vidro”: transparente, impede a passagem do sólido, mas não nega a luz por ser refratário. Assim é a cronologia do homem, o passado que transpõe esse vidro e se reflete no futuro. Impossível fazer uma diferenciação clara, mesmo que exista essa parede ‘hoje’. Distinguir o que é passado, presente ou futuro, quando tudo que foi poderá ainda ser ou não. E o presente? Onde está o presente, se o próximo segundo já será futuro?

Além disso, a vida é uma sequência; e não uma edição dos melhores hits, mas também não é uma compilação dos desastres do troféu Framboesa. Acreditando nessa sequência, contraponho a expressão de Gonçalo M. Tavares que fala em “cabeça diária”, pois penso que o ser humano fez sua cria-tecnologia que ritualiza upgrades diários; mas é bem mais conservador, muda o que está fora numa velocidade superior a o que está dentro, pois constrói paredes internas em concreto firme dissimulando seu próprio tempo, pensa ser mais seguro retornar às cavernas e à pedra lascada.

Impossível tornar exatas essas transições e quantificar/qualificar o perene que passará pelo refratário; e o tanto que se volatizará no ar. Assim como é impossível tornar exata a dimensão ‘tempo-sentimento’, pois este não sabe o que é relógio e sequer conta as horas, e muitas vezes ignora o vidro.

Parece irônico, mas o que é passado, presente ou futuro, só o tempo atestará. Pois se existe mesmo esse vidro-hoje a separar fatos e pessoas, existe o vidro-afeto a ser quebrado a qualquer momento, não aceitando nem ser refratário, para se tornar apenas pleno em sua invisibilidade. 

*Ana Cecília Romeu

* Publicitária e escritora

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3 Comentários

  1. Luciana Santa RIta

    Ana Cecília,

    Parabéns pelo texto, suave, terno e real em relação a trilogia. Um dia li  um pensamento de Einstein que não sei exato, mas era assim: a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente.

    Logo penso que as vezes é importante até esquecermos os bons momentos do passado para não sacrificar o presente e as oportunidades do futuro. Difícil? Sim ,mas não impossível, pois a mudança é  lei irrevogável e o vidro é transparente, mas não inquebrável E não é sereno se dedicar também a  esperar o futuro. Penso que é necessário deixar a luz entrar, mesmo quando vidro possui um insufilme negro ou o futuro não tenha feito o convite em um 

    Não me vejo no  passado porque o vidro já não é tão resiliente, mas não quero fixar o olhar em que  chega sozinho, que é futuro.

    Por fim, ser amigo do passado para não perder referências, acordar no presente e não perder a carona para o futuro.

    Parabéns pela lucidez!

    Luciana

  2. analuciaporto

    Querida amiga Cissa, você fez uma apologia ao tempo, de maneira magistral e, ainda por cima, foi generosa ao alegar que os sentimentos podem quebrar a barreira do presente, passado e futuro, já que não acompanham as horas e podem ignorar aquele vidro que você deu de exemplo. Você abordou um assunto com a peculiaridade de uma lucidez abrangente e convincente. Foi categórica! Beijos. Adorei…

  3. CentelhaLuminos

    Boa noite!

    Cissa querida que bom poder vir aqui também pra comentar uma crônica sua.
    Escrever sobre a transitoriedade do tempo, da vida, do momento presente que num picar de olhos já se torna passado, convenhamos não é muito fácil, e você o fez de forma magnífica, e  pensarmos  a fundo sobre essa impermanência das horas, sentimos como que uma vertigem, uma sensação de que algo se nos escapa pelos vãos dos dedos da mão, que se volatizará no ar, como disse você em seu belo texto. Contudo, amiga, de uma coisa nós já nos apercebemos: tudo passa! Momentos felizes ou momentos infelizes, risos ou lágrimas, o tempo inexorável leva, e nunca saberemos ao certo se somos nós que passamos pelo tempo, ou o tempo que passa por nós…ou passamos juntos!
    Parabéns querida, adoro te ler!

    Bjos da Lu…

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