DAS BRUMAS DO PASSADO

(Numa noite de nebuloso inverno)

Numa dessas madrugadas de insônia, quando se torna impossível conciliar o sono, revendo anotações dos meus cadernos de viagens encontrei, entre outros, o relato de um personagem que conheci em um distante dia do passado.

O velho sanfoneiro do Crato.

Foi numa tristonha tarde de outono, naquela cidade do interior do longínquo Ceará, que me deparei com aquele homem já velho, de rosto curtido pelas agruras da dura vida naquelas paragens. Sentado em um pequeno banco de madeira junto à calçada, tocava seu instrumento musical com uma habilidade que só os anos lhe haviam ensinado. Muitas passagens tristes e sua vida em versos ele me contou, e através delas pude penetrar mais profundo nos sentimentos e na alma daquele sanfoneiro cuja visão, já na mocidade havia perdido. Andando pelas estradas da vida, quantas figuras e destinos trágicos se conhecem nesse nosso país de enormes injustiças sociais. Ao reler essas páginas, já amarelecidas pelo tempo, antigas lembranças me vieram então, e, como espectros vindos do imenso túnel do tempo, chegam até mim, pelos labirintos do passado, imagens de figuras que em outras épocas e lugares conheci. No silêncio das avançadas horas da madrugada, eles vem chegando.

O primeiro que surge das névoas do tempo é o menino de Friburgo, com suas pernas cortadas na altura dos joelhos, que sorridente me olha. Depois, vários outros vem se aproximando, até que por último, a que mais profunda impressão me deixou: Luana, a pequena menina que dormia em uma caixa de cartão em uma das calçadas da cidade maravilhosa, e que tão trágico fim teve.

Mesmo depois de tantos anos, são tão nítidas as lembranças de lugares e pessoas que hoje vivem sobre as areias do passado, e com as quais não voltarei a encontrar-me jamais. Ficaram como perdidos no exílio dos escuros rincões da alma, enquanto os contemplo apenas com olhos que de muito longe voltam, levados pelo tempo e pela distância. Nos caminhos da vida a gente vai-se perdendo na outra margem, onde agora só existe o silêncio que já ninguém escuta, e de onde nunca mais se pode voltar, pois já se transformaram em fantasmais desertos de um mundo que pertence ao passado. Caminhos que lutamos para esquecer, pois quando a agente se amarra ao passado morre um pouco a cada dia, embora se sinta no mais profundo de nós mesmos, dos determinados lugares onde os homens viveram e foram marcantes em suas existências guardem algo que não morre de todo.

Segundo Jeley Kosinski, “Cada uno de nosotros está solo y , cuanto antes um hombre lo compreenda, mejor para el.”

Somos todos passageiros por breve tempo, nesta imensa nave na qual vivemos até que chegue o momento de deixá-la para percorrer os insondáveis caminhos da eternidade.

Geraldo Mastella 
Escritor santanense

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