O Direito Constitucional à Saúde: sem Limites e sem Fronteira

A decisão da Justiça Federal de S. Livramento que com fundamento em norma internacional e com sobrado amparo constitucional autoriza serviços de saúde em regiões de fronteira, representa um marco histórico na interpretação e aplicação do Direito Internacional. Até mesmo para quem possa discordar dos argumentos vertidos não pode negar a relevância e acuidade desta notável decisão.

A questão não é nova. Poucos anos atrás, quando nesta mesma seara da saúde, enfrentamos os episódios da Santa Casa de Livramento tivemos oportunidade de dizer, também nesta Platéia: que o problema mais grave em relação às normas internacionais na fronteira, não é o fundamentos para aprová-las, e sim o de efetivamente aplicá-los e protegê-los.

A necessidade de regulamentar estas questões, e a urgência em oferecer alternativas, faz com que quando se trata de enunciar os direitos os Acordos são obtidos com relativa facilidade, porém, quando se trata de passar à ação e aplicá-los, ainda que o fundamento seja inquestionável, insurgem-se os questionamentos que dependem do poder de convicção de quem seja contraio. Não é de repetir agora as muitas críticas dirigidas, para demonstrar o caráter capcioso dos argumentos que afirmam: que um direito vigente na fronteira, apesar de vigente não vale.

O interesse de uma norma comum nada mais é do que o consenso da necessidade de se respeitar e velar por certos valores fundamentais, que, pela importância, seu tratamento não pode ser deixado a cargo de um único Estado.

A polemica não é teórica, mas concreta. Não se trata de saber a natureza e fundamentos do direito à saúde, nisso todos concordamos; o dilema é como fazê-los efetivos. Extrair das normas nacionais e internacionais sua máxima eficácia para fazer efetivo um direito, que, a despeito de que possa ser contrariado, sabemos responde a uma insofismável realidade social. Talvez este tenha sido um dos principais méritos desta corajosa e histórica sentença.

Não podemos esquecer que na elaboração de uma norma internacional há uma jurisdição legislativa que é o produto da nossa vontade, conjugada com a de outra nação, neste caso Brasil e Uruguai.

O tratamento diferenciado que merece este tema no Brasil é produto do Art. 5. º, 2.º, da Constituição, e justifica-se na medida em que os tratados internacionais de tutela aos direitos e garantias fundamentais (e o direito à saúde é um deles) apresentam por conta da norma internacional um caráter especial. Tratados como estes objetivam a salvaguarda dos direitos, o equilíbrio e a reciprocidade de tratamento que transcendem os meros compromissos de um Estado em face de outro. Este caráter especial passa a justificar, assim, o status superior atribuído aos tratados internacionais de proteção aos direitos fundamentais. Em regiões como a nossa a reciprocidade estimula a concessão de vantagens jurídicas, promove o desenvolvimento e serve para dissuadir a prática de violação às normas, quase sempre descompassadas com a realidade.

O problema que temos não é de fundamentação, mas de eficácia, impedir que apesar das solenes declarações diplomáticas que afirmam o direito vigente, eles sejam continuamente violados.

Neste sentido cabe ao regimento profissional, como norma geral, ajustar-se às normas internacionais e constitucionais, e não o contrário.

As razoes de contrariedade à aplicação do Tratado Internacional, oferecidas pelo Conselho Regional de Medicina, fora das instâncias judiciais em libelo oferecido à opinião publica, incomum nestes casos, revela outra peculiaridade destacável desta causa.

Inconformado com uma decisão judicial é absolutamente lícito recorrer às instâncias de revisão. Não é comum, todavia, que diante de uma decisão desfavorável a parte recorra à imprensa para revelar as razões de seu inconformismo. Entretanto, até esta manifestação pública de desagravo formulado pelo Conselho Regional de Medicina, marcou um aspecto positivo do debate, pois retirou a discussão do âmbito exclusivamente acadêmico e jurídico para trazê-lo ao domínio público, donde a discussão realmente interessa.

No fundo se sabe que a destinação de recursos para a saúde, sempre dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, aqui na fronteira não é diferente, o recente exemplo da Santa Casa, e este não é o único, ilustra o drama do exercício profissional e as necessidades que são comuns lado a lado da fronteira.

O encargo de superá-los impõe na elaboração das normas e ao aplicá-las, fazer opção por valores em detrimento de outros, todos relevantes. O Direito à saúde eleva-se na Constituição Federal como um direito e uma garantia fundamental: dever do estado e direito do cidadão.

Assim, os juizes decidem de acordo com ordenamento vigente regras de direito, nacionais e internacionais. No direito brasileiro estas últimas se incorporam ao acervo interno logo de completo controle de legalidade que não prescinde da participação do Legislativo e Executivo. Assim um tratado internacional vigente também é lei.

Não se trata apenas de uma visão sobre a aplicabilidade de um Tratado Internacional na linha de fronteira, a eficácia da norma vai de mão dada com a legitimidade, e com ela a própria credibilidade das instituições. Nada se revela mais prejudicial e perigoso do que elaborar uma norma internacional, sem a vontade efetiva de cumpri-la integralmente.

Todos estes fundamentos sustentam esta histórica sentença. Em âmbito internacional o “Acordo Complementar sobre os serviços de Saúde na Fronteira” em âmbito interno o Direito Constitucional à saúde, ambos igualmente idôneos.

Talvez, desde esta fronteira, não sejamos exemplares em tudo o que tenhamos conseguido realizar, ou na prosperidade em outros aspectos da vida, mas este é um dos pontos em que teríamos todas as condições de abrir espaço ao desenvolvimento e marcar, com decisões como esta, o nosso melhor exemplo para o sempre conflitivo Direito Internacional.

 

Leonardo Araújo Abimorad
Prof. Direito Internacional

 

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