Dom Quixote: o melhor livro do mundo

Em maio de 2002, uma impressionante comissão de críticos literários de várias partes do mundo escolheu o livro Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), a partir de 1602, como a melhor obra de ficção de todos os tempos. Ao tempo em que narrava os feitos do Cavaleiro da Triste Figura em ritmo dos romances da cavalaria, Cervantes enervado com o sucesso daquele tipo de gênero literário junto ao grande público, realizou uma das maiores sátiras aos preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis de fancaria.

Agonia do cavaleiro da triste figura O Cavaleiro da Triste Figura e Rocinante

“Todas as coisas humanas têm dois aspectos… para dizer a verdade todo este mundo não é senão uma sombra e uma aparência; mas esta grande e interminável comédia não pode representar-se de um outro modo. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade.”

No final de uma caçada às lebres, ele sentiu-se exausto. Pediu que o levassem ao leito. Dom Quixote percebeu a presença da morte. Logo os amigos chamaram um médico que, pegando-lhe o pulso, recomendou com a rude franqueza dos castelhanos que tratasse de salvar a alma, porque o corpo era de pouca valia. Então algo poderoso ocorreu. Aos brados o moribundo disse ter recuperado o juízo, livrara-se das desgraçadas leituras que fizera sobre os feitos dos cavaleiros. Disse abominar Amadis de Gaula, o espadachim de fantasia que tanto o inspirara até não muito. Esperou então, sereno, a morte para livrar-se daquelas assombrações da literatura que tanto infernizaram a sua vida.

Em tempos bem anteriores, ainda que magro de doer, dispunha de saúde suficiente para lançar-se pelo mundo afora. Até os cinqüenta anos vivera com criada, sobrinha e um rapaz arrieiro, numa fazendola na província da Mancha, uma espécie de brejo-seco do Reino de Castela, na Espanha. Desocupado, empobrecido, passara os dias lendo os feitos dos heróis da cavalaria.

Até que um dia, conta Cervantes, de tanta leitura, seus miolos ressecaram. Imitando então aquela brava gente que povoava os seus sonhos, cismou em querer consertar as coisas tortas e desfazer os agravos do mundo. Mandou pôr uma sela em Rocinante, seu maltratado pangaré, calçou-se com as velhas armas dos seus antepassados, um escudo, e saiu a trote atrás de façanhas que lhe dessem renome. E como ele próprio esperava:

-Dichosa edad y siglo dichoso aquel adonde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse en bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro.

(Feliz idade e feliz século aquele onde sairão à luz as minhas famosas façanhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpidas em mármores e pintadas em telas para a memória do futuro).

(D.Quixote: II Capítulo)

Campo de Criptana com seus moinhos, a quem Quixote enfrentou com sua lança. As viagens se sucedem sob a alucinação de quem está vivendo no tempo da cavalaria. Em suas andanças, Dom Quixote encontra moinho de vento que confunde com gigantes. Arremete contra um dos moinhos, cujas pás, devido a um vento mais forte, lançam o cavaleiro para longe. O escudeiro socorre seu mestre. Dom Quixote não dando o braço a torcer, diz que o feiticeiro, ao notar que o cavaleiro estava vencendo, transformou os gigantes em moinhos.

Aventuras e desassossegos de toda a ordem são o que não lhe faltaram pelas andanças pelos ermos de Castela. Além de fantasiar uma dama só sua, uma pobre camponesa que ele chamou de Dulcinéia del Toboso, teve a felicidade de encontrar um homem da sua aldeia, o gorducho Sancho Pança, um lavrador, logo promovido a escudeiro, e que, entre outras coisas, tentou inutilmente inculcar em Dom Quixote algum princípio de realidade que fosse. Sim, porque o nosso cavaleiro vivia oscilando em perpetrar as loucuras desaforadas de Roldão ou mergulhar nas melancolias de Amadis, seus modelos. De longe ou de perto, o contraste espantoso entre o Cavaleiro da Triste Figura, como Dom Quixote mesmo se chamou, magro e alto, e o seu valet, o pequenino e roliço Sancho, montando em seu burrico, incendiou a imaginação de todos.

Maldizia o tempo todo a época que lhe coubera viver. A pólvora e o chumbo discursaram ele, liquidaram com os cavaleiros. Um disparo de longe, arte de um covarde, destroçava a vida de um bravo. Surras ” da fementida canalha”, também não lhe faltaram. Certa vez, em pleno campo, encontrando uma fila de bandidos atados, conduzidos por alguns policiais, resolveu espantar a lei. Engalfinhou-se com os guardas que fugiram espavoridos dos espadaços daquele doido. Soltos, os foras-da-lei, além de surripiarem-lhe os pertences, aplicaram-lhe uma sova de dar dó. Comentário de Dom Quixote: “aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os afligidos, acorrentados e opressos… vão pelas estradas por suas culpas, ou por serem desgraçados… só lhe cabia ajudá-los como necessitados”. Nem na dor das imerecidas porretadas ele se emendava!

Dom Quixote de La Mancha, a maravilha literária de Cervantes, narrado na mais fina prosa castelhana, é composta de 126 capítulos de sabedoria, amizade, enternecimento, encantamentos, loucuras e divertimento, divididos em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em 1615. Monumento que Cervantes começou a erguer com pena e tinta, “no silêncio do esquecimento”, encarcerado em Sevilha, em 1602, por mesquinharias. Obra que mais de 100 críticos literários, vindos de todas as partes, recentemente reunidos, indicaram como o melhor livro do mundo.

Numa das suas digressões, Cervantes deu para comparar a vida de soldado, que ele foi, com a de escritor, que ele terminou sendo, concluindo que aquele ofício só lhe dera dor de cabeça, vigílias, vazios de fome e padecimentos mil. Todavia, ao contrário de Shakespeare, seu contemporâneo, era consciente de que criara uma obra-prima, algo verdadeiramente extraordinário. Enquanto isso, numa desconhecida aldeia da Mancha, o corpo do velho fidalgo maluco recebia as exéquias. Não se enganem, não o enterraram não. Basta a qualquer leitor abrir a primeira página do Dom Quixote para ver que, erguendo a espada, o soberbo doido está ali vivíssimo, pronto para sair a assombrar o gigante Briareu e pôr a correr as injustiças.

Em tempos modernos, Miguel de Cervantes vivendo em Santana do Livramento – província de São Pedro, lindeira com a República Oriental, certamente os estudiosos de Dom Quixote fariam ilações dos seus fantasmas com a Usina Eólica do Cerro Chato e suas cercas de pedra. E, montado em seu quarto de milha lutando pelos direitos dos menos favorecidos que a sociedade insiste em discriminar.

Nesta metáfora, Quixote foi um índio Charrua que lutou pela liberdade, pela igualdade, imbuído de um espírito fraterno onde seus irmãos da Pampa encontram nele o defensor de seus ideais.

Altamir Marques Portella Lopes
Bancário Aposentado
Advogado Licenciado

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