Casos de abuso sexual infantil aumentam 10% em relação ao ano passado

Mesmo após 23 anos de criação do ECA, atos contra a criança e o adolescente continuam recorrentes na cidade

Neste sábado, o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 23 anos de criação

Neste sábado, dia 13, é comemorado os 23 anos de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, mais conhecido como ECA.

Segundo a conselheira tutelar Luciana Ramires, o ECA nada mais é do que um instrumento de cidadania. “Na verdade, o ECA é uma lei – 8.069/90 – fruto da luta de movimentos sociais, profissionais, e de pessoas preocupadas com as condições e os direitos infantojuvenis no Brasil”, afirmou.

O ECA garante que todas as crianças e adolescentes, independentemente de cor, etnia ou classe social, sejam tratados como pessoas que precisam de atenção, proteção, e cuidados especiais para se desenvolverem e serem adultos saudáveis. São consideradas crianças os indivíduos com idades entre zero e 12 anos e adolescentes dos 12 aos 18 anos.

Luciana Ramires, presidente do Conselho Tutelar atuante na cidade, destacou, em entrevista à reportagem, os principais problemas enfrentados a nível local no tocante ao cumprimento do ECA. 

A Plateia: Na cidade, qual o problema mais recorrente relativo ao descumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente?
Luciana: São vários. Mas vemos muito recorrentemente problemas de comportamento. Muitos pais querem que a gente puna os seus filhos, mas comportamento não é nosso caso. O que aumentou expressivamente do ano passado para esse, foram os casos de abuso sexual. Creio que o aumento ficou na casa dos 10%, somente nesse primeiro semestre. Acredito que, até agora, já chegamos ao mesmo número de casos registrados durante todo o ano passado, na cidade.

A Plateia: Negligência também é algo que faz parte da realidade dos pais santanenses?
Luciana: Sim, em todos os sentidos, como frequência à escola, saúde, higiene. Inclusive, os pais, muitas vezes, se sentem prejudicados com a existência do Estatuto, mas ele não somente dá direitos à criança e ao adolescente, como deveres também. No entanto, muitos acreditam que tiveram seu direito de educar tirado. O que o Estatuto condena é corrigir os filhos de forma agressiva, mas a obrigação da educação das crianças é dos pais.

A Plateia: Qual a punição prevista pelo ECA para esses casos?
Luciana: Negligenciar é crime, e quem pune é o Ministério Público e o Poder Judiciário. O Conselho Tutelar é um órgão de proteção, e não de punição, jamais iremos punir uma criança ou adolescente, tampouco seus pais.

A Plateia: Há muitos casos de agressão na cidade?
Luciana: Bastante. E não somente nas classes mais carentes, mas em todas as classes sociais.

A Plateia: Como pode ser feita a denúncia?
Luciana: É um dever da sociedade proteger a criança e o adolescente. Uma das maneiras de realizar a denúncia é pelo Disque 100. O denunciante em momento algum é identificado, não precisa repassar seus dados, relatando a denúncia de forma anônima. O Conselho Tutelar também está à disposição para essas denúncias, tanto através de telefone, quanto aqui no local, onde o registro da denúncia também é feito sem identificação.

A Plateia: Os casos de abuso sexual costumam acontecer entre os membros da mesma família?
Luciana: Geralmente é intrafamiliar, sim. Ou a pessoa convive com a família, é amigo próximo, dificilmente é um estranho.

A Plateia: Qual o procedimento adotado nesses casos?
Luciana: O caso é encaminhado à Delegacia de Polícia, onde é feita a ocorrência policial e exame para saber se houve realmente o abuso. Nós acompanhamos todo esse processo, inclusive quando a criança é levada ao CREAS, para atendimento com a psicóloga. 

Casos 

Luciana relatou à reportagem casos mais graves já atendidos pelo Conselho Tutelar em Livramento: “Após denúncia de vizinhos, uma menininha de três anos de idade chegou praticamente deformada aqui no Conselho Tutelar. Fomos até a residência, a mãe resistiu quando pedimos para ver a criança, insistimos e ela acabou deixando. Entramos no quarto, a menina estava deitada, o rosto, olhos inchados, com o corpo cheio de hematomas e, supostamente, teria sido abusada sexualmente também, pelo próprio irmão. Foi uma situação bem chocante, a trouxemos para o Conselho junto com a mãe, que negava as agressões, e o irmão, que alegava que ela tinha caído”, contou Luciana.

Abusos

Em relação aos abusos, segundo Luciana, todos os casos são tristes. Mas os casos que mais chocam aparecem quando os pais permitem que o abuso aconteça. “Já houve casos aqui no Conselho em que os pais permitem e são coniventes com o abuso. Um dos últimos casos que tivemos, foi quando a mãe permitiu o abuso em uma criança de 11 anos”, lembra.
Casos como esses são encaminhados à Delegacia de Pronto-Atendimento e, segundo a conselheira, geralmente os pais estão a par do que acontece com a criança. “Essa é a parte mais triste: lidar com uma situação em que quem está para proteger é quem acaba violando os direitos dessa criança”, avalia.

Conselho Tutelar

É o órgão específico de proteção, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos pelo ECA. No Conselho Tutelar presente na cidade, atuam cinco conselheiras: Luciana Ramires (presidente do Conselho), Alcina da Rosa (vice-presidente), Sueli Rieffel, Marciane Lanes, Dircelene Padilha – que está substituindo Lizia de Oliveira.
O Conselho Tutelar funciona de segunda a sexta-feira, pelo telefone 3968-1031, das 8h às 12h, e das 14h às 18h. Todos os dias, durante as 24 horas, há plantão pelos celulares 9649-2489 / 8138-9989 / 9655-3933. 

AÇÕES

Sérgio Levy é o presidente do COMDICA, um dos órgãos que luta pelos direitos das crianças e adolescentes no município

Presidente do Comdica fala sobre o que mudou nesses 23 anos de vigência do ECA

De acordo com Sergio Levy, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, houve avanços em quatro níveis: a nível de governo, com a criação de programas e serviços voltados à família e atendimento direto, principalmente na área de combate à violência doméstica, abuso e exploração sexual; na área jurídica, com alterações no tocante à criminalização e penalidades; na rede sócio-assistencial, que tem buscado qualificar os serviços prestados, adequando-se às novas exigências da Assistência Social; e na implantação dos Conselhos de Direitos da Criança, Conselhos Tutelares, Juizados e Promotorias da Infância e Juventude, em grande parte dos municípios do País.

No entanto, ainda há muito o que mudar, segundo Sergio: “Crianças e adolescentes, infelizmente, ainda não são prioridade absoluta na designação de recursos públicos e privados, principalmente em relação aos Direitos Fundamentais, que são saúde, educação, alimentação e direito a dignidade”, destacou.

Em Sant’Ana do Livramento, de acordo com Sérgio, diversas entidades visam garantir os direitos da criança e do adolescente, como a formação de uma rede de proteção que inclui o COMDICA, o Conselho Tutelar, o CREAS – Centro Referência Especializado de Assistência Social – Secretaria Municipal de Assistência Social, Secretaria de Saúde, Secretaria de Educação, Comitê Binacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, Polícia Civil, Brigada Militar, o Ministério Público e Juizado da Infância e Juventude, Conselho de Assistência Social e a rede sócio-assistencial (entidades públicas e privadas de atendimento e defesa de direitos).

 “Acredito que o ECA não precisa mudar em nada”

Promotora da Infância e da Juventude, Rosi Barreto, destacou sua opinião durante entrevista

“Não se pode afirmar que está havendo a aplicação do princípio constitucional da proteção integral, em sua plenitude”, promotora de Justiça da Infância e da Juventude, Rosi Barreto, sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, na esfera judicial. 

Entrevista 

A Plateia: Na sua opinião, o que mudou nestes 23 anos de ECA, no que diz respeito a assegurar os direitos da criança e do adolescente?
Promotora: A proteção da criança e do adolescente e de seus direitos no Brasil é fato recente, concomitante com a Constituição Federal de 1988. Considerando que antes disso ela contava-se apenas em iniciativas filantrópicas, assistencialistas e paternalistas de atendimento de ‘menores’, as quais se tornaram mais conhecidas pela desproteção, pode-se dizer que muita coisa foi feita com o advento do ECA. Ao longo desses 23 anos de vigência, ele tem buscado proporcionar às crianças e aos adolescentes o reconhecimento de que são titulares de direitos, bem como tem visado assegurar o exercício de tais direitos e garantias. Porém, nada obstante, nesses anos de vigência, apesar de se verificar significativos avanços práticos para a consolidação da cidadania infantojuvenil, não se pode afirmar que está havendo a aplicação do princípio constitucional da proteção integral em sua plenitude. 

A Plateia: Para tratar destes assuntos, como está formada esta a estrutura Judicial em Sant’Ana do Livramento?
Promotora: Sant’Ana do Livramento conta com uma vara especializada, na qual também são processados e julgados os feitos atinentes à matéria da Infância e Juventude. Disse “também”, porque tramitam todos os feitos relacionados à vara de família. Atualmente, desde a saída da Dra. Mirtes Blum, que permaneceu à frente das questões da infância ao longo de 20 anos, temos contado somente com a atuação de magistrados substitutos, os quais têm titularidade de outras varas, circunstâncias que os sobrecarregam de trabalho. No mais, a estrutura é da Vara de Família e conta com uma Oficiala de Proteção. Há algum tempo, contava também com o auxílio de uma assistente social, integrante do quadro de servidores do Poder Judiciário, mas que atualmente já não mais exerce suas funções na comarca. E só. A necessária equipe interprofissional, cuja intervenção é expressamente prevista em dispositivos legais, por ser verdadeiramente imprescindível à tomada de decisões corretas e responsáveis pelo Poder Judiciário, até o momento, não existe. 

A Plateia: Quais as ações que vêm sendo desenvolvidas no município para minimizar os problemas da infância e da juventude?
Promotora: As ações do poder público na área da infância e juventude ainda deixam a desejar, nada obstante já conte o município de Livramento, assim como a grande parte dos municípios do Estado, do seus Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e Tutelar, criados e em funcionamento. Relativamente a esse último, tem-se verificado alguns problemas de infraestrutura, em razão da falta de atenção e compreensão por parte do ente público. Também há alguns problemas decorrentes da postura dos próprios conselheiros, os quais ignoram sua importância para o efetivo cumprimento da lei e da Constituição e implantação do sistema de garantias do ECA. Afora isso, a municipalidade conta com conhecida rede de proteção, composta pelos mais diversos órgãos, a exemplo de CREAS, CRAS e etc., estrutura essa que tem garantido, ainda que não em sua integralidade, o resguardo de uma infância mais alentadora.

Em recente contato com o Conselho Municipal de Direito – responsável em elaborar a política de atendimento para a área da infância e juventude, através de levantamento junto aos órgãos e entidades de atendimento de crianças e adolescentes – informaram o encaminhamento de várias reivindicações, dentre elas a aprovação do programa família acolhedora e convênio com outros municípios, a fim de se garantir o acolhimento de jovens meninos. 

A Plateia: O ECA precisa, ainda, passar por mudanças necessárias para o seu cumprimento?
Promotora: Sem adentrar na questão redução da maioridade penal, acredito que o ECA não precisa mudar em nada. A questão é dar real efetividade aos direitos da criança e do adolescente. Para isso, é necessário que exista um elo de ligação entre as políticas públicas e ações governamentais, com o trabalho desenvolvido pelos Conselheiros Tutelares e Conselheiros de Direitos, e também com os demais atores sociais da rede de proteção dos direitos da criança. Isso porque as ações no desempenho de medidas protetivas devem ter caráter de solidariedade e de corresponsabilidade, uma vez que não cabe somente à família, ou comunidade, ou sociedade ou ao Estado, o dever ou a isenção em assumir essas ações. Nesse sentido, a família, a comunidade e a sociedade não podem ficar passivas, a pretexto de que a satisfação de determinado direito depende, simplesmente, da criação de um serviço pelo poder público. Não foi sem atenção que o texto legal colocou o ente estatal depois das três primeiras instituições, sem as quais não existiria nenhum estado de direito. 

A Plateia: Neste sentido, qual seria sua principal sugestão?
Promotora: De referir o papel fundamental da comunidade, em razão da estreita vinculação que tem com seus pares, sendo ela a primeira e perceber se os direitos das crianças e dos adolescentes estão sendo violados ou assegurados, porquanto é nela que surtem os efeitos imediatos do tratamento que está dispensado. Por isso, deve ela exercer o dever de corresponsabilidade e solidariedade. E no dizer de Carlúcia Maria Silva, em seu artigo publicado na web, a “Solidariedade humana, enquanto necessidade natural, é dever moral de todos os seres humanos que, além das suas necessidades materiais, necessitam, também, da companhia, convivência e solidariedade de seus semelhantes”. Corresponsabilidade que ultrapassa o dever moral e significa a apropriação da responsabilidade social de contribuir para a não ocorrência de discriminações, desajustes ou outras práticas que possam atingir negativamente crianças e adolescentes em situação irregular, de abandono ou delinquência.

Notícias Relacionadas

Os comentários são moderados. Para serem aceitos o cadastro do usuário deve estar completo. Não serão publicados textos ofensivos. A empresa jornalística não se responsabiliza pelas manifestações dos internautas.

Deixe uma resposta

Você deve estar Logando para postar um comentário.