Antes, bela adormecida. Agora, mulher a mil

Integrante do projeto Mulheres Mil Binacional diz estar acordada para a vida e preparada para encarar novos desafios, com sua nova formação

A dona de casa Clenir dos Santos Boaventura, 45 anos, acordou para uma nova vida, e agora só quer saber de correr em busca dos sonhos

“O projeto Mulheres Mil é uma oportunidade que eu tenho de mudar de vida. Parei de estudar aos doze anos, e quando me falaram que eu poderia voltar, encontrei uma chance de crescimento, porque isso tudo faz muita falta”. O pequeno trecho do depoimento da dona de casa Clenir dos Santos Boaventura, 45 anos, é recheado de emoções, revelações, anseios e aquilo que para ela é considerado, atualmente, como algo sagrado: as suas realizações. Integrante do grupo que participa do projeto Mulheres Mil Binacional, atividade coordenada pelo IFSul – Instituto Federal Sul-rio-grandense, campus de Sant’Ana do Livramento, e que tem à frente a professora Alcione Maschio, Clenir dos Santos admite que via a vida apenas por pequenas frestas, mas hoje, com campo de visão ampliado, diz que está se preparando para alçar vôos maiores. “Eu me emociono sempre quando falo desse assunto (lágrimas), porque sempre tive vontade de voltar a estudar. Minha mãe trabalhava no Armour e eu tive que ficar em casa, aos doze anos de idade, para cuidar dos meus irmãos mais novos. Cresci com essa vontade e querendo aprender, para mudar e melhorar a minha vida”, desabafou, enquanto contava parte de sua história.

Como personagem de história infantil, a mulher que permaneceu adormecida durante a maior parte de sua vida, conseguiu uma outra façanha, ao contrário dos finais elegantes e bem contados dos contos de fadas. Clenir acrescentou um ingrediente a mais, ao se tornar seu próprio “príncipe” e ser acordada por si mesma para uma nova etapa.

Durante boa parte da vida ao lado marido, com quem se casou aos 18 anos – depois de iniciar o relacionamento ainda aos doze – a mulher que aos poucos se transforma em uma das provas da eficiência do projeto Mulheres Mil, cuidou de oito sobrinhos e da filha, abrindo, assim, mão da sua felicidade. 

O mar, pela primeira vez

“Classifico esta oportunidade como única. É uma chance que temos de aprender um pouco mais. Com essa idade que eu tenho, eu precisava dar um sentido para a minha vida. Todos os meus sobrinhos, além da minha filha, cresceram. Uns casaram, outros foram embora, e fiquei apenas com o meu marido e um sobrinho em casa. Eu passei o tempo todo envolvida com eles, cuidando sempre, para que não fizessem coisas erradas”, diz ela.

Clenir admite que, desde que começou a participar do projeto Mulheres Mil, o seu jeito de pensar se modificou com relação à vida. “Tenho a oportunidade de ver outras coisas. Eu, por exemplo, não conhecia o mar. Agora, há pouco, eu pude ir a Santa Catarina, estive no mar pela primeira vez. A minha alegria foi imensa, e hoje eu sei que se não tivesse aprendido algumas coisas dentro do projeto, tudo para mim seria apenas uma paisagem. Agora, eu vejo o mundo de uma maneira diferente, porque antes era apenas em casa”, disse ela, que sabe que está tendo grandes oportunidades. 

Clenir e os acasos que a levaram ao projeto

Sem residir em uma das áreas beneficiadas pelo projeto, Clenir conta que ficou sabendo através de uma amiga que algo novo iria acontecer na cidade, e que as informações poderiam ser obtidas na Prefeitura Municipal. Sem pertencer ao CRAS – Centro de Referência e Assistência Social, do Armour, a dona de casa acabou se inscrevendo e, por uma incrível coincidência, sua ficha acabou sendo enviada junto com as das outras mulheres e ela acabou sendo aprovada, já que outras tantas acabaram desistindo, ou não preenchendo os requisitos exigidos pela coordenação. “Eu fui atrás do projeto para obter esse conhecimento. Muitas vezes, as pessoas falavam comigo e eu não entendia o que estava sendo dito. Tinha medo de falar algumas palavras, mesmo que erradas, e isso me incomodava muito. Também fui atrás porque sei que posso crescer, fazer cursos e buscar uma colocação melhor no mercado de trabalho. Se eu tiver mais conhecimento, eu vou ser mais valorizada. Até hoje, eu trabalhei como empregada doméstica, ou babá, e sempre me pagavam R$ 200,00, R$ 100,00. Agora, com estudo, eu descobri direitos que antes eu não sabia que tinha, como ter a carteira assinada, por exemplo”, disse.

A mulher que tinha vergonha de conversar com as pessoas diz que preferia, muitas vezes, ficar calada, por medo de ver os outros rirem das coisas que dizia. “Geralmente, quando não se tem muito conhecimento, as pessoas não nos ouvem. Quando a gente está estudando, as pessoas param para conversar. São poucas as pessoas que sentam e conversam quando a gente diz que não tem estudo. Quando a gente fala que trabalha de empregada doméstica, é a mesma coisa, as pessoas não valorizam. Agora, quando digo que estou fazendo um curso dentro de um projeto no Ifsul, que estou estudando, as pessoas param e me escutam”, desabafou entre lágrimas, que regaram insistentemente boa parte da conversa. 

“…Meus sonhos estão todos no Ifsul agora”

Entre sorrisos e lágrimas, Clenir diz não ter a menor saudade da casa onde morava há bem pouco tempo, a pouco mais de cem metros da residência atual. “Quando passo naquele local, sou bem grata à oportunidade que estou tendo agora. Minha vida mudou, graças a Deus, e ao nosso esforço. Por isso, agora, quero realizar outros sonhos. Quero fazer coisas que minha mãe, por exemplo, não conseguiu. Meus sonhos, agora, estão todos concentrados no Ifsul. Eu sentia muita falta dos estudos e, agora, estou muito feliz. Vocês não imaginam a bênção que foi quando me avisaram que meu nome estava no jornal. Eu fui até o armazém pedir o Jornal A Plateia emprestado para a vizinha, para poder ler, e conferir. A minha alegria foi gigante quando vi que fui uma das selecionadas. Quando contei em casa, ninguém acreditou. No dia que ligaram para eu ir lá, apontei no papel e coloquei na parede. No dia e hora marcados eu fui lá e voltei para casa cheia de novidades. Minha família me dá total apoio, e isso ajuda bastante”, disse.

Clenir diz que agora quer correr atrás do sonho de ser socorrista. “Sempre quis ser enfermeira, desde criança, porque sei o quanto é importante ajudar os outros. Desde os oito anos de idade, quando minha mãe ficou hospitalizada, eu via as enfermeiras cuidando dela com tanto carinho, e isso ajudou a alimentar meu sonho. Minha mãe faleceu em 2004, e se eu pudesse agradecer a ela tudo o que nos ensinou em vida (lágrimas), seria maravilhoso. Tenho muito clara na minha retina a cena da minha mãe usando apenas seus chinelos de dedo no inverno rigoroso, e quando se é criança, não se entende direito o por quê. Minha mãe não media esforços. Hoje, sei que ela usava apenas aquele calçado para andar na geada comigo, porque não tinha outros para usar. Às vezes, ela ficava sem comer para nos dar comida. Agora, fico pensando que não falta nada em casa, mas eu não tinha noção dessas coisas quando criança. Hoje, eu sei que sou uma mulher melhor. Quando eu era criança, não tinha árvore de Natal. Minha irmã confeccionava a nossa árvore com bolinha de sinamomo. Há apenas dois anos, eu comprei a minha árvore de Natal. Aí vocês imaginam a minha alegria”, revelou ela.

De olhar tenro, sutil, e profundamente observador, Clenir revela, entre suas carências, um inigualável gosto pelos novos desafios, e se transforma, a cada dia, em um exemplo absolutamente original das múltiplas possibilidades que são capazes de advir da educação. 

O Mulheres Mil

“Abrir as portas do Instituto Federal Sul-rio-grandense para mulheres que são marginalizadas, e muitas até já perderam a esperança, é o desafio das nossas vidas como educadores. Ouvir delas que o Mulheres Mil mudou a forma como elas veem o mundo é a maior recompensa que um professor pode receber”, disse a coordenadora do projeto, professora Alcione Maschio.

A primeira turma do projeto, no campus Sant’Ana do Livramento, é formada por 40 alunas. Elas foram escolhidas por critérios não muito comuns, se comparados aos demais ingressos em escolas federais. Tiveram prioridades as mulheres mais velhas, as com menos renda, aquelas que estão a mais tempo fora da escola e as que têm menos escolaridade. O programa oferece a oportunidade de melhorar a qualidade de vida das mulheres e suas famílias, através da educação. Disciplinas do núcleo comum de aprendizagens, como matemática, línguas, saúde, direito da mulher e informática, são oferecidas logo nas primeiras aulas. Em seguida, e é nessa fase que as alunas se encontram, elas devem escolher a área que pretendem, que gostam de trabalhar. “Nesse sentido, é prioridade do programa levar em consideração as aprendizagens prévias dessas mulheres. Ou seja, o que elas já sabem, o que já aprenderam ou tiveram experiência até agora, para podermos proporcionar uma complementação, um aprimoramento nesse conhecimento. Além disso, temos que buscar parcerias no mundo do trabalho para não acontecer dessa aluna sair com um bom curso, sem ter onde, nem como, trabalhar. Em resumo, a escolha do curso profissionalizante se dá a partir das aprendizagens, da vocação das mulheres, da disponibilidade dos nossos parceiros e das nossas próprias condições como escola”, explicou Alcione.

As aulas ocorrem às terças e quintas-feiras, à noite, conforme o desejo da maioria das alunas. Com uma carga horária de cerca de 200 horas de disciplinas do núcleo comum, a previsão de término do curso vai depender do curso profissionalizante que elas escolherão. Nesse mês, serão ministradas disciplinas que abordarão temas como empreendedorismo, educação socioambiental e sustentabilidade econômica, e, por último,políticas públicas para mulheres.

Aparentemente, as aulas apresentam as mesmas semelhanças de uma aula comum. Mas a turma do Mulheres Mil, que tem funcionado no Núcleo de Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Pelotas (UFpel), até que o prédio do IFSul esteja em condições, reúne perfis muito diferentes, e isso é um desafio para quem está à frente do projeto. Dividem o mesmo espaço, tanto mulheres que não sabem nem ler e escrever, quanto algumas com escolaridade maior.

 

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