Irritação e tranquilidade

O cachorro do vizinho não parava de latir. Fiquei irritado. Quando eu era pequeno, não conseguia estudar por causa dos latidos de um cachorro. Na verdade, o cachorro que late apenas revela uma minha limitação, minha irritação devido aos seus latidos. Revela minha impaciência.
Ora, se em vez de odiar o cachorro eu odiasse a irritação que seus latidos suscitam em mim, eu poderia aproveitar tal ocasião para mudar de vida.
No trânsito, uns vão lentamente pelas ruas, outros correm. Quando correm demais, eu buzino. Se vão lento demais, buzino também. Na verdade, também eles apenas manifestam uma minha limitação, minha impaciência.
O cachorro manifesta meu desejo de perfeição acústica, pela ausência dela, com os seus latidos. Os lentos e rápidos no trânsito manifestam meu desejo de perfeição no trânsito.
O problema é que perfeição fora e dentro de nós não existe. Então, o melhor a fazer é combater minha irritação, por meio da calma, da luta pela conquista da serenidade, em vez de ficar odiando os latidos do cachorro, em vez de ficar buzinando para os lentos e os rápidos.
A ausência de perfeição gera irritação, e a irritação é uma forma grave de imperfeição. Então, se eu quero perfeição, deveria lutar contra minha irritação, sendo grato ao cachorro que late já que foi ele quem a revelou-me.
A cólera manifesta a vitória da irritação, que assumiu o controle de um pobre coração, então, cabe lutar contra a causa, a irritação, para evitar os sintomas. Seria possível permanecer indiferente aos motivos geradores de irritação? Possível ou não, penso que se trata de um bom desafio prático. E com preparação talvez seja mesmo possível. Até porque a irritação parece ser muito mais algo já presente em nós do que algo causado por algum motivo exterior. O motivo exterior apenas acorda a fera, que já estava lá, no canto escuro da caverna da alma, esperando por carne.
Então, cabe tentar matar a fera interior ou domesticá-la. Para começar tal trabalho penso que o primeiro passo seja o reconhecimento profundo, sincero da existência do problema e o desejo também profundo, sincero, de não dar mais comida para as feras que se escondem nos cantos sombrios da nossa alma. Em outras palavras, é preciso ascese política (é sempre uma questão de gestão do poder), espiritual, psicológica, pessoal e coletiva.

Fábio Régio Bento – sociólogo

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