Estado relembra tragédia da Kiss

Madrugada de 27 de janeiro de 2013: um domingo que nunca mais será esquecido no mundo inteiro

As primeiras pessoas que conseguiram sair da boate acionaram os bombeiros, que chegaram ao local por volta das 3h

Madrugada de domingo, 27 de janeiro de 2013. Por volta das 2h30, Santa Maria e demais cidades do Rio Grande do Sul acordavam com uma das notícias mais tristes da história. A boate Kiss, um dos pontos noturnos mais frequentados da cidade, se transformaria no palco de uma tragédia e marcaria o coração dos gaúchos para sempre. 

Nesta segunda-feira faz um ano que 242 jovens se preparavam para celebrar a última noite de suas vidas, sem saber. Um sábado (26 de janeiro de 2013) que deveria ser lembrado pela diversão, música e risadas, ficou marcado pelo luto e reflexão. Nesta data, a vida de muitas famílias foi alterada de forma drástica. 

O sinistro foi considerado a segunda maior tragédia no Brasil em número de vítimas em um incêndio, superado apenas pela tragédia do Gran Circus Norte-Americano, ocorrida em 1961, em Niterói, que vitimou 503 pessoas, e que teve características semelhantes às do incêndio ocorrido na Argentina, em 2004, na discoteca República Cromañón. Classificou-se também como a quinta maior tragédia da história do Brasil, a maior do Rio Grande do Sul, a de maior número de mortos nos últimos cinquenta anos no País e o terceiro maior desastre em casas noturnas no mundo. 

O incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, na época, gerou grande comoção nacional, e até internacional, e fez com que as autoridades agissem de forma rigorosa, fechando muitas casas noturnas que não possuíam alvará ou condições adequadas de segurança. 

Uma investigação foi aberta para a apuração das responsabilidades dos envolvidos, dentre eles os integrantes da banda, os donos da casa noturna e o poder público. O incêndio iniciou um debate no Brasil sobre a segurança e o uso de efeitos pirotécnicos em ambientes fechados com grande quantidade de pessoas. A responsabilidade da fiscalização dos locais também foi debatida na mídia. Houve manifestações em toda a imprensa nacional e mundial, que variaram de mensagens de solidariedade a críticas sobre as condições das boates no País e a omissão das autoridades. 

O inquérito policial apontou muitos responsáveis pelo acidente, mas poucos foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça. O inquérito policial-militar, por sua vez, foi complacente com os bombeiros envolvidos no caso. 

Um ano depois, a dor das famílias que perderam seus filhos, irmãos, primos e sobrinhos na tragédia, aos poucos, dá lugar à revolta. Membros da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria-AVTSM se dizem desamparados pelas instituições públicas.

Superlotação

Com área total de 691 m², a boate deveria receber, no máximo, 691 pessoas. Segundo um dos donos da Kiss, na noite do incêndio, havia cerca de 800 pessoas na boate. Porém, a polícia suspeita que este número poderia chegar a 1 mil.

Asfixiados

Praticamente a totalidade das vítimas morreu por asfixia.

Lembranças que não serão esquecidas facilmente

Os relatos de santanenses que viveram de perto o horror da Boate Kiss ficarão marcados para sempre em suas lembranças. O valor à vida é uma das lições que estes jovens levarão para sempre.
A estudante Sharom Lopes, que atualmente mora em Santa Maria, disse que os primeiros meses após a tragédia foram os mais difíceis, pois o medo a impedia, inclusive, de frequentar lugares fechados.

A Plateia: Passado um ano da tragédia, o que mudou em sua vida?
Sharom Lopes: O que mudou foi a maneira de enfrentar as coisas na vida. Aprendi a dar muito mais valor à família, aos amigos e aos momentos felizes da vida.

A Plateia: Quantos amigos seus foram vítimas do incêndio?
Sharom Lope: que vieram a falecer tive uma colega de cursinho e alguns conhecidos, já que eu frequentava a boate todo o fim de semana e trabalhava em uma loja de moda jovem da cidade.

A Plateia: Você consegue entrar em locais fechados e se divertir sem problemas, ou ficou algum trauma?
Sharom Lopes: Nos primeiros meses, não ia a nenhum lugar fechado. A primeira festa à qual fui após a tragédia foi em um clube de Santa Maria, que é mais amplo e não estava muito lotado. Hoje em dia, já saio sem problemas, porém ainda prefiro um encontro em casa com os meus amigos.

A Plateia: Do que você mais se lembra daquela noite?
Sharom Lopes: Mesmo após um ano, as memórias ainda são bem fortes. Lembro-me de tudo desde o momento em que saí – fui uma das primeiras – lembro dos bombeiros, da correria e gritaria na rua e os corpos todos no estacionamento do Carrefour. Lembro-me dos velórios e do quão horrível foi aquele dia e os que se seguiram, e até hoje, mesmo tendo passado um ano da tragédia, Santa Maria não é mais a mesma cidade.

Felizmente, utilizei o que aconteceu como um ensinamento na minha vida, e lutei ainda mais pelos meus sonhos: como prova, passei na UFSM para Ciências Contábeis e meus sonhos apenas estão começando. Agradeço a Deus todos os dias por poder estar viva e poder realizá-los ao lado que quem eu amo.

Simone Nicolini de Simoni, 20 anos, também foi uma das sobreviventes do incêndio da Kiss. Ela estuda Fonoaudiologia na Universidade Federal de Santa Maria, e está nos Estados Unidos, em um intercâmbio estudantil, mas relatou para a reportagem que durante estes dias “minha cabeça e meu coração estão em Santa Maria e com as minhas amigas que passaram por esse momento há um ano”.

Relato

Após um ano da tragédia, não há como não lembrar de tudo que passei, aliás, não há como esquecer vivendo em Santa Maria e morando perto do lugar. Na minha vida, muita coisa mudou, pois não tem como não vir à mente as lembranças daquele dia e, ao lembrar, sinto uma confusão de sentimentos e me surpreendo comigo mesma ao pensar como o ser humano deve lidar com tudo isso. Não é tarefa fácil, mas a vida continua e não podemos parar no tempo. Sinto dentro de mim e, às vezes é difícil explicar e fazer com o que os outros entendam, desespero e alívio, dor e liberdade, tristeza e alegria. Sim, desespero porque naquele dia passei pelo pior momento da minha vida, e o mundo inteiro parou para ver o coração do Rio Grande em luto, e alegria por ter conseguido sair e ver a emoção dos meus pais me buscando na rodoviária e o amor imenso por poder abraçá-los. Ficam dentro de mim, eternamente, as lembranças dessa tragédia, desde o momento que decidi ir, até o momento de sair, bem como a dor dos familiares de tantos jovens que terminaram sua vida naquele momento. Tenho uma eterna gratidão a Deus pela nova oportunidade que me deu, em valorizar os dias da vida, e a cada dia sinto como é bom estar viva neste mundo que é passageiro. Mas muitas vezes me pego pensando em como seria se tivesse sido diferente, e então rezo para me acalmar. Tentei seguir meus dias com um sorriso no rosto, muitos me julgaram por causa disso, mas não sabem realmente o que se passa dentro de mim, como é morar em Santa Maria e ver tudo diferente, a vida de universitária e de amizades por lá. Porém, mantive minha fé e com alguns sorrisos tentei seguir meus dias. Tive o conforto da minha família e dos meus amigos e psicóloga, que não mediram esforços em me ajudar quando os momentos de crise bateram à minha porta. Em relação às festas, demorei um pouco a sair, e quando saía ficava olhando para todos os lugares, procurando portas de emergência. Várias vezes fui embora mais cedo, agora tenho frequentando mais. Em Santa Maria as festas mudaram um pouco também, há mais ambientes de lazer em lugares abertos, e vejo que isso também está acontecendo em Sant’Ana do Livramento, principalmente nessa época de verão. Passar por tudo isso me deu uma lição de vida gigantesca, de que devemos valorizar a vida e estar de bem com as pessoas que amamos, pois literalmente não se sabe o dia de amanhã. Devemos ser solidários com o outro, porque ninguém sabe a alegria e dor que cada um carrega no coração. Passado um ano, fico muito triste em saber que nada de justiça foi feito até então, nada sólido que dê certa esperança. Porém, sei que tem muita gente que se dispõe a não apagar da memória e clamar por justiça. Agradeço aos amigos e a minha família pelo apoio de sempre, e desejo força para aqueles que perderam seus amigos, filhos.

PERDA

No dia 2 de março de 2013, o Hospital Cristo Redentor-HCR confirmou, no começo da tarde, a morte do santanense Pedro Falcão Pinheiro, de 25 anos, 240ª vítima do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Pedro, após ficar vários dias internado, não resistiu ao envenenamento por gases tóxicos e também às queimaduras diversas. O santanense era colorado, estudava na Unifra e trabalhava na América Latina Logística. Pedro foi o primeiro paciente atendido em Santa Maria a ser enviado a Porto Alegre, de helicóptero, ainda no dia da tragédia. Os familiares preferiram não relembrar o fato à imprensa.

 

 

O que mudou, em termos de segurança, depois da tragédia da Kiss

Comande regional de Bombeiros destaca que a comunidade começou a cobrar mais segurança

Um dos órgãos mais questionados após a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, foi o Corpo de Bombeiros. As cobranças foram em dois sentidos: prevenção de locais públicos e na ação para o salvamento das vítimas.
Para falar sobre o assunto, a reportagem ouviu o tenente-coronel Pedro Ricardo Maron Burgel, comandante do 10º CRB-Comando Regional de Bombeiros, com sede em Livramento.

A Plateia: A partir da tragédia ocorrida em Santa Maria, o que mudou com relação à fiscalização de boates e ambientes fechados?
Burgel: Quero deixar claro que estou respondendo com base na região do 10º Comando Regional de Bombeiro. Depois da tragédia da Boate Kiss, começamos a analisar de forma mais aprofundada as informações que tínhamos, como dados estatísticos, para que pudéssemos ter uma real situação, naquele momento. Na realidade, em termos operacionais e administrativos com relação à prevenção de incêndio, não mudou muita coisa, até porque já tínhamos, e temos, uma sistemática de trabalho com indicadores de potencial – como quantos estabelecimentos estão ao alcance da legislação, quantos planos existem no Corpo de Bombeiros, de prevenção, ou seja, estão com alvarás em dia, enfim. Também locais que concentram reuniões de público, escolas e boates. Então, estamos trabalhando neste sentido há algum tempo. Continuamos seguindo o mesmo trabalho, e é obvio que as mudanças no comportamento das pessoas, dos empresários, faz com que eles mesmos procurem o Corpo de Bombeiros, o que deveria ser o correto, adequando o local à legislação.

A Plateia: As casas noturnas de Livramento conseguiram se adequar às exigências legais?
Burgel: Em Livramento, especificamente, somente tivemos um clube que foi interditado parcialmente, e que atualmente já está com a situação resolvida. As demais boates, dentro do que prevê a legislação – os sistemas de prevenção e proteção contra incêndios – estavam de acordo e com alvarás em dia.

A Plateia: A comunidade começou a cobrar mais segurança dos locais públicos?
Burgel: Esse foi o principal fator observado pelo Corpo de Bombeiros, ou seja, as pessoas estão mais preocupadas, buscando mais informações. Isso facilitou o nosso trabalho na questão das atividades de prevenção.
O marco segurança mudou no sentido de comportamento das pessoas, e isso automaticamente altera a sensação de segurança. Estamos todos sendo mais conscientes, mais observadores nestas questões. Inclusive, o Corpo de Bombeiros recebeu várias ligações sobre determinados eventos grandes realizados em Livramento. Os pais queriam saber se havia prevenção, se era um local seguro, se estava tudo dentro da legislação. Isso ocorreu inúmeras vezes, e é um indicador de que as pessoas estão mais preocupadas.

A Plateia: De que forma as pessoas podem perceber se o ambiente frequentado é seguro?
Burgel: Primeiro saber quantas pessoas aquele local comporta, verificar as rotas de saída, se as sinalizações de emergências são visíveis. Porque, muitas vezes, elas existem, mas não atendem às necessidades. Verificar onde estão os extintores.
Fazer esta observação visual de forma que as pessoas possam saber que naquele local tem a prevenção, e de que tenha alguém habilitado para executar uma evacuação de emergência. Até porque não adianta chegar a um local, olhar que tem alvará e não se importar em saber onde fica uma saída de emergência, por exemplo. Eu, particularmente, tenho este costume, não porque sou bombeiro, mas porque isso se tornou, há bastante tempo, um hábito. Então, quando chegou em um local fechado, já vou observando onde estão as principais saídas, os extintores, enfim.

A Plateia: O senhor deixaria um filho seu frequentar uma boate em Livramento?
Burgel: Não gostaria que fosse, mas por ser um pai coruja. Mas com relação à segurança, os estabelecimentos, em Livramento, estão com os alvarás em dia. O que é um alvará, neste sentido? Ele diz que aquele estabelecimento, seja qual for, está com sistema de prevenção e proteção contra incêndios de acordo com a legislação, e é isso que afirmamos, dentro daquele período de validade do alvará. Isso também não quer dizer que se o alvará estiver vencido, os sistemas de proteção e prevenção a incêndios não estarão de acordo com a legislação. Ele pode estar vencido, mas os sistemas estão em funcionamento. Hoje, a questão de mandar filho para um determinado lugar vai de cada pai. É óbvio que não podemos afirmar que tudo está 100%, porque passa o tempo, vence o alvará.

A Plateia: O contingente atual do Corpo de Bombeiros é suficiente para manter a fiscalização em locais fechados, como boates?
Burgel: O contingente tem conseguido alcançar a demanda e prazos legais que preveem a nossa normatização. Ou seja, dificilmente um local em Livramento, dentro de um prazo de 10 dias, não seja atendido pelo Corpo de Bombeiros, sendo que o prazo agora com a nova legislação é em torno de 30 dias, mas a normatização anterior seria de 20 dias.

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1 Comentário

  1. Valter Rosa

    Respeito ao cidadão brasileiro “sonegado” pela Receita!
    A demora de até 10 horas no atendimento no dia de ontem foi algo extremamente desrespeitoso. Só nos atenderam porque houve revolta dos que aguardavam atendimento. É uma bofetada na cara ter de enfrentar 7 hs para pagar R$30 em tributo e acabar pagando R$  300 em hotel e alimentação. Uma aberração. Espero que os funcionarios da Receita em Livramento tenham mais respeito‚ de agora em diante e lembrem que todos somos brasileiros. Deixo registrado meus parabens a todos os policiais militares que acompanharam a manifestação‚ pois demonstraram muita educação‚ cordialidade e respeito Por todos que ali estavam . Atitude exemplar da Brigada Militar local‚ digna de admiração.

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