O DIREITO BRASILEIRO

Ora, se todos os juízes já julgaram e decidiram por maioria, por que seria necessário julgar de novo? Não há resposta lógica. A resposta vem da história de nossa Justiça, de nosso direito. O Século XX foi o século dos regimes totalitários. Para se legitimarem, buscaram proclamar-se populares, democráticos, alterando a interpretação e aplicação das leis que já existiam, quando da chegada dos ditadores ao poder. Também buscaram alterar as leis, retirando delas o que não convinha colorindo os regimes de leis e contextos favoráveis à opressão dos povos dominados.

Foi o caso da Alemanha, sob o nazismo, que pretendeu fazer um novo Código Civil (Zivilgesetzbuch, ZGB), para substituir o monumental BGB (Bürgeliches Gesetzbuch). Mas, entre metódicos e temerosos de mexer com um símbolo de suas conquistas culturais, os alemães mal conseguiram revisar uns dos livros do BGB e o regime ditatorial acabou. O Código Civil não foi alterado.

Já na Itália, o regime fascista encontrou terreno mais fértil à mudança, juristas, digamos, mais pragmáticos, que conseguiram redigir um novo Codice Civile, em 1942 (que permaneceu vigente, salvo algumas alterações, por muito tempo após o fim do regime de exceção).

Juristas progressistas, exilados ou não, foram derrotados. E a ciência do direito processual italiano começou a se desenvolver em oposição à ciência do direito material. Isto é, a lei processual e a doutrina (os juristas comentadores da lei e construtores de teorias) processual se puseram em oposição ao direito civil, de índole autoritária.

Em termos bem práticos, o processo se colocou exatamente para ser um embargo, uma barreira, um obstáculo para a aplicação do direito. E os mecanismos processuais se tornaram um meio de impedir que o direito material fosse aplicado, para o bem ou para o mal.

E o Brasil?

O Brasil entra nessa história porque o direito processual italiano veio a ter uma influência decisiva no direito processual brasileiro, exatamente por causa da influência dos juristas, da doutrina italiana – alguns até vieram para cá, fundaram uma escola -, a partir do momento em que o processo se tornou um obstáculo à realização do direito.

A ideia de que a ação seria um direito abstrato contribui para dizer que o processo não servia para aplicar o direto, mas era um fim em si mesmo. E os doutrinadores brasileiros adoraram essa ideia, que se casava bem com nossa tradição de não obedecer a direito algum, não obedecer a lei alguma, a não ser pelo critério da conveniência.

Os ditos populares, aliás, são muito similares na Itália e no Brasil: “feita a lei, feita a fraude” – fatta la legge, fatto l’inganno. Nem foi Getúlio Vargas o primeiro, não será o último, a aplicar a regra do “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”… (a verdadeira expressão teria sido: para os amigos, tudo; para os indiferentes, a justiça; para os inimigos, o cárcere” – Graciliano Ramos que o diga…)

Assim, mesmo sem nenhuma mudança em nosso Código Civil, o processo, a lei processual, a doutrina processual passaram a ser usados apenas para atrasar a aplicação do direito, da lei, dos contratos. E houve uma hipertrofia da ciência processual.

Pior, é que, sem a compreensão disso, as pessoas passaram a entender que esse uso do processo seria democrático, garantista, instrumental. Enfim, abandonamos o direito e a lei e nos apegamos ao processo. Parece que, ao usarmos o processo, estamos defendendo réus, aplicando garantias. Mas, em verdade, estamos mesmo é impedindo que a lei se aplique, que os direitos se façam concretos.

O processo põe-se contra a realidade, impede que a encaremos e usemos o direito a nosso favor. Ele significa que a lei e os contratos não serão cumpridos. Que tudo terminará empatado e sem solução, sem decisão. Quem ganha com isso? O status quo e os beneficiários da ordem atual das coisas. O processualismo “progressista” não está pelas garantias, mas pelos obstáculos, pelas barreiras, pelos embargos. 

O AUTOR 

O texto acima é parte de um artigo do juiz de Direito Alfredo Attié, também doutor em Filosofia pela USP. Foi escrito antes da decisão de ontem do STF, mas ajuda-nos a compreender o que aconteceu. Para o doutor Attié o apego ao processo tornou-se um obstáculo à realização do direito.

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