Ventura…

Há uns trinta e cinco ou quarenta anos, nas imediações da antiga Viação Férrea, perambulava uma figura popular talvez sexagenária ou quem sabe apenas judiada pelos maus tratos da vida.

Chamava-se Ventura.

Com a cara vermelha, a barba e os cabelos ruivos, crescidos e já meio grisalhos, o Ventura costumava sentar-se nos portais.

Era o terror das donas de casa. Não podia ver uma mulher que não largasse um chiste ou nome feio. E se alguém o mandasse calar a boca, aí sim o Ventura não parava mais de largar palavrões. Não havia quem o silenciasse, pois o seu motor era movido a cachaça da braba, e depois de começar a funcionar, não se apagava facilmente.

Mas quando estava sóbrio, ficava em silêncio e não incomodava ninguém.

Em qualquer tempo amanhecia dormindo ao relento e na intempérie, coberto com uma velha túnica militar. E, ao clarear o dia, levantava-se e se dirigia a qualquer armazém, onde lhe dessem algo para comer e beber.

Nisto eram até generosos com o Ventura.

Mas havia os maldosos, que lhe davam apenas cachaça pura, porque sabiam que isso o tornava desbocado. E ficavam espiando para ver o efeito que o álcool produzia.

Certo dia o Ventura estava sentado no portal dum armazém, ali na esquina das ruas Salgado Filho e Sete de Setembro, quando alguém, vendo-o sóbrio e tranqüilo, aproveitou para vingar-se dos impropérios que, na véspera, havia dirigido à sua esposa. E, pegando um desses paralelepípedos que ficam soltos na rua, aproximou-se e desferiu-lhe uma pedrada tão violenta na testa, que o Ventura tombou desmaiado. E teria morrido, se não fosse socorrido a tempo e levado para a antiga S.AM.D.U., um serviço médico-ambulatorial de urgência que funcionava na cidade.

O Ventura no fundo não era mau. Era apenas mais um indigente que não tinha onde morar. Não era pior, como pessoa, do que muita gente boa, que não pode ingerir uma bebida alcoólica sem se tornar desagradável ou criar coragem para dizer e fazer tudo aquilo que tem vontade, como agredir impunemente os outros com atos e palavras. E o Ventura não era diferente destas pessoas, a não ser pelo fato de ser pobre e não ter onde cair morto.

Como tantas outras figuras populares, vítimas do desamparo e da pobreza, o Ventura vivia perambulando pelas ruas da cidade, e para não morrer de fome e de frio, encontrava no álcool o seu único amigo e protetor. E se agredia com palavras, este era talvez o seu grito de rebeldia, o seu discurso, contra um sistema injusto e desumano, que incomodava a consciência das pessoas e das instituições.

Luciano Machado

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