Gestos

Existem pequenos gestos que se tornam grandes, que jamais se pagam, e jamais se esquecem.
Certa vez minha mãe vendeu uma casa e depositou o dinheiro no Banco do Brasil, numa caderneta de poupança. Imediatamente veio o governo Collor de Mello e bloqueou todos os depósitos a prazo por tempo indeterminado. Por ironia, eu era funcionário do Banco e não podia fazer nada.
Sem poder sacar, minha mãe resolveu vender outra casa, mas esta fazia parte de um espólio, com partilha, e o dinheiro teve de ser depositado numa conta especial e só retirado mediante alvará judicial. O referido alvará havia uma semana que estava na mesa do Juiz para ser assinado e minha mãe dependia urgentemente desse dinheiro para depositar uma caução do aluguel de um apartamento. Passavam-se os dias e a informação era de que o alvará continuava na mesa do juiz para ser assinado, enquanto a pilha de documentos para assinar sobre sua mesa aumentava cada vez mais.
O prazo para alugar o apartamento expirava naquela sexta feira e se minha mãe não fizesse o depósito da caução até as quatro horas da tarde, seria alugado para outra pessoa. Perguntei ao secretário se podia falar com o juiz e ele me respondeu que não, que aquele era o andamento normal da tramitação dos papéis, que tivéssemos paciência e aguardássemos a assinatura e a liberação do alvará por parte do magistrado que, aliás, estaria viajando naquela sexta feira ao meio-dia e só regressaria na semana seguinte. De modo que todos os despachos pendentes sobre sua mesa teriam de esperar a próxima semana.
Nesse tempo, falar alguém do povo diretamente com um juiz era muito difícil, ainda mais numa sexta feira em final de expediente e véspera de viagem. Para tratar qualquer assunto tinha-se que marcar uma audiência e questões de natureza jurídica só podiam ser encaminhadas e resolvidas através de um promotor ou advogado.
Já era quase meio dia e o fórum nesse dia funcionava só na parte da manhã.
Como não conhecia ninguém ali, e àquela hora seria impossível obter a intermediação de um advogado, me ocorreu apelar na passada para o titular de um dos cartórios que havia na entrada do fórum e que já estava saindo para almoçar.
Ele me respondeu: “Olha, esse não é o caminho. Mas eu vou ver o que posso fazer.” E subiu ligeiro as escadas, rumo ao gabinete do juiz.
Fiquei aguardando ali na frente, e daí uns quinze minutos ele desceu com o alvará assinado.
“Tivemos sorte, disse. O Juiz já estava de saída. O alvará de vocês era o terceiro de baixo pra cima.”
Pois o gesto de cortesia daquele tabelião, há mais de vinte anos, serve para ilustrar que a solução de qualquer problema, grande ou pequeno, depende de nossa iniciativa, mesmo diante de um quadro de aparente impossibilidade, ou por intermediação de pessoas que mal conhecemos, e a quem seria demasiado constrangedor apelarmos; porém, às vezes, são os únicos intercessores possíveis entre um determinado impasse e a sua resolução. Deixo, pois, aqui consignado, o meu reconhecimento a esse magnânimo gesto de Marco Antonio Cruz Cademartori.

Luciano Machado

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