Dos que murmuram ou falam sozinhos

Há uns vinte ou trinta anos, andava por aqui uma figura solitária, perambulando e carregando alguns jornais em baixo do braço. Usava uma velha capa de gabardine, os cabelos compridos, enrolados atrás da cabeça, e uma barba grisalha; tinha o olhar sereno e o andar tranquilo.
Era conhecido por Dom Miguel, um filósofo de origem romena, e falava várias línguas além do espanhol e do português.
Ele costumava andar falando sozinho, em espanhol, mas tudo o que dizia tinha nexo. Em voz baixa, como se estivesse a conversar com alguém, comentava o noticiário dos jornais, daqui e do Uruguai, que lia diariamente:
“Como puede la indústria de la bicicleteria producir médio millon con tan escasa matéria prima … ”
Mas às vezes se referia aos circunstantes com algum comentário interessante, como costumam fazer os chamados ‘loucos’ , sobre o modo de ser das pessoas. Teria sido professor no Uruguai. Depois preso e torturado por suas idéias. Agora vagueava solitário pelas ruas e praças de Livramento e Rivera. Não pedia nada a ninguém. Mas sempre tinha uns trocados para o jornal e um lanche. Não se importava com a intempérie nem com o mau tempo. Uma vez passei de ônibus e o vi sentado, quase imperceptível, sob uma chuva torrencial, num banco da Praça Artigas, em Rivera.
Era proveitoso, quando ele estava sentado num banco da praça, sentar por perto e ouvir o que ele dizia, e talvez fosse interessante ler o que escrevia a lápis num bloquinho de papel que carregava consigo, porque, apesar do seu aspecto extravagante, era um sujeito educado, carismático, inteligente, culto e bem informado. Já deve ter morrido há muito tempo. Mas onde andará o bloco de anotações desse cronista e filósofo desconhecido …
Outro que costumava falar sozinho era o negro Tierra, grande músico e figura da noite. Mas o Tierra falava ostensivamente para ser ouvido e não para si mesmo. Uma vez, de madrugada, entrou espalhafatosamente num restaurante ali na Avenida Paul Harris e quando percebeu numa mesa um grupo de esquálidos noctívagos, cada um com o seu garfo em torno de uma única travessa de risoto já pela metade , parou no meio do salão, farejou o ar e falou, sem olhar para os lados: “Acá hay hombres sin plata … pero llenos de amistad por sus amigos y de amor por las mujeres!”
Em outra oportunidade, ao passar de noite por alguns malandros parados numa esquina, murmurou: “Hay que facer calles redondas pá que los malandro no se queden parao en las esquina …”
O Tierra, por seu jeito carismático e pelo grande músico que foi, merece um lugar de destaque na história de nossa fronteira.
Nos áureos tempos do futebol santanense, quando as torcidas eram mais esportivas e a brigada militar não intervinha com tanto rigor para manter a disciplina, uma figura muito conhecida e bem relacionada na comunidade colaborava para manter a esportividade e o bom humor. Chamava-se Cândido Alves Maciel ou Candinho e era funcionário da antiga Casa Lobato.
Uma das características do Candinho era falar sozinho, de forma indireta, para retrucar um chiste ou uma flauta.
Então, ele começava, sem tirar os olhos do campo:
“Camaradinha curto e baixo, de bigodinho, usando peruca, gravatinha borboleta, chapéu preto e terno cinza …”
E o sujeito, sentindo-se identificado, acabava enfiando a viola no saco e se mudando para outro lugar nas arquibancadas.
Candinho fazia isto por brincadeira, sem nenhum rancor ou maldade, mais para divertir e alegrar as pessoas ao seu redor do que para atacar alguém que às vezes nem conhecia.
Mas não tinha papas na língua e sempre acertava na mosca, pois assim como o Tierra e o dom Miguel, era um grande observador da natureza humana. Ele conhecia como ninguém a vida privada de seus conterrâneos e ninguém se atrevia a provocar o Candinho com ironias. Foi outra grande figura humana que deixou saudades.
Murmurar ou falar sozinho é um problema sério. É preciso ter cuidado. Como não é comum entre as pessoas que se acham normais e inteligentes, tem gente que se invoca e revida, pensando que é com ela, ou considera o sujeito com menosprezo, como se fosse louco. Mas o pior talvez, seja ninguém prestar atenção nem tomar conhecimento. Porque, às vezes, aqueles que murmuram ou falam sozinhos, revelam coisas de fundamento.
Luciano Machado

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