“Malandro é o cavalo-marinho que se faz de peixe prá não puxar carroça”. Do pára-choque de um caminhão Volvo

MALANDRAGEM BRASILEIRA

O brasileiro é um tipo estranho: ele acredita que malandragem é um dom que deve ser aprimorado ao longo da vida. É por isso que ele se esforça para furar uma fila, fazer ultrapassagens pela direita da rodovia congestionada, estacionar num shopping ou num supermercado ocupando duas vagas, conseguir um emprego cujo único dever é receber no fim do mês e ter alguém que lhe consiga uma carteira de habilitação, sem precisar dos testes do Detran.

Não tente explicar nossos hábitos de esperteza para um estrangeiro, ele não vai entender e ainda poderá fazer um mau juízo de nosso caráter. O jornalista e escritor Janer Cristaldo, santanense e cidadão do mundo, quando foi viver na Suécia, lembra um episódio definitivo que lhe serviu para uma apresentação a um país civilizado e desenvolvido.

Janer foi postar uma carta e numa caixa automática colocou uma moeda de duas coroas. Em vez de uma cartela com selos recebeu de volta um impresso com um pedido de desculpas, pois não havia mais estampilhas. Para recuperar o valor depositado, ou os selos, teria de telefonar para um determinado número.

Decidiu pagar para ver, mesmo estando há menos de um mês no país e apenas arranhava o idioma nacional. Depois de explicar, com dificuldade, o incidente com a máquina, a jovem funcionária dos Correios garantiu-lhe que no dia seguinte, às 11 horas, no endereço fornecido, Janer receberia os selos. E ainda perguntou: “O senhor prefere selos com a série do rei ou com a série da ponte?” “Qualquer uma”, respondeu Janer.

Na manhã seguinte, mal passavam dois ou três minutos das 11hs, o carteiro do bairro enfiou um envelope na porta do apartamento de Janer. “Nele vinham os selos, série do rei, com um compungido pedido de desculpas dos Correios”, contou o jornalista. Janer estava vivendo num país onde o Estado respeitava os direitos mínimos do cidadão.

De volta ao Brasil, um ano depois, Janer estava em Porto Alegre e foi telefonar num orelhão da (hoje falecida) CRT. A máquina engoliu a ficha. Lembrou da Suécia e telefonou para a CRT, explicou o caso e perguntei como devia fazer para telefonar. Uma jovem funcionária da estatal gaúcha, talvez até da mesma idade da colega sueca, foi direta ao ponto: “Ora, ponha outra ficha.”

Janer: “Subi em meus tamancos. Eu quero a minha ficha de volta. A moça disse que nada pode fazer. Pedi para falar com seu superior. Ela me passou alguém que também me sugeriu por outra ficha. Respondi que não pretendia por ficha nenhuma, queria a minha de volta, etc., pedi para falar com seu superior, falei com outro superior, repeti toda a lengalenga e esta terceira e última instância me bate o telefone na cara. Indignado, fui á televisão reivindicar meus direitos. O próprio jornalista que comentou o fato deveria estar pensando que eu havia voltado pirado da Escandinávia, contaminado talvez por alguma escandinavite aguda. Nada disso. Eu havia vivido em um país onde o cidadão era respeitado. Para um brasileiro, isso é mais marcante que qualquer liveshow”.

Janer pode viver duas experiências sócio-antropológicas sobre a malandragem oficial. Duas máquinas que comiam moedas provocaram seus deveres de cidadão e ele pode compará-las. A “malandragem” sueca era se desculpar pela “esperteza” do equipamento e devolver-lhe as moedas ou fornecer-lhe os selos que foram adquiridos.

No Brasil, era uma malandragem autêntica, sem aspas, que começava num equipamento defeituoso e em serviço e se completava na esperteza oficial da empresa que apenas recomendava que comprasse mais fichas, sem direito sequer a um pedido de desculpas.

Essa malandragem oficial ainda vige no nosso país. De onde deveriam vir os bons exemplos de cidadania chegam apenas notícias de falcatruas, de rapinagem de verbas públicas, de nepotismo, de safadeza, de empreguismo sem limites, de corrupção metódica e programática.

Como, então, não sermos também malandros se nossos referenciais éticos são sufocados diariamente pela avalanche de desmandos, maquiados de esperteza e apelidados de governabilidade? O bom combate em nome da ética e da cidadania leva goleada no jogo contra o time da Malandragem Futebol Clube.

 

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