Para não lembrar

Procurar pelo próprio nome nas ferramentas de pesquisa da da internet, nem sempre é uma experiência prazerosa. Processos judiciais, dívidas protestadas, perfis antigos de redes sociais, fotos com o(a) ex-cônjuge, cartas publicadas em jornais, projetos que não deram certo, notícias sobre acidentes em que se esteve envolvido são alguns dos resultados que podem derrubar a autoestima de qualquer um — e que, se pesquisados por terceiros (um possível empregador, por exemplo), podem causar prejuízos concretos à pessoa, nos campos profissional, social e afetivo.
Isso significa que os portais de busca podem ser proibidos de acessar certos documentos existentes na rede mundial de computadores, a fim de apresentá-los para quem faz uma busca? O Tribunal de Justiça da União Europeia entende que sim. Na última terça-feira, a corte instruiu o Google a eliminar de seus mecanismos de indexação o nome de um cidadão espanhol, que se sentiu prejudicado pela associação de seu nome a uma dívida antiga, que já havia sido quitada.
A corte reconheceu que, em relação a alguns registros existentes na internet “considerados inadequados, não pertinentes ou não mais pertinentes do ponto de vista dos fins para os quais foram tratados e do tempo transcorrido”, os cidadãos podem reivindicar judicialmente — e conseguir — a exclusão de referências indesejadas dos sites de busca.
O direito ao esquecimento não é um tema novo para a humanidade, nem uma questão que surgiu com a internet. O assunto aparece em grandes obras da literatura mundial, como o romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, publicado em 1862. Jean Valjean, o protagonista, é um ex-presidiário que cumpriu pena de trabalhos forçados por roubar um pão. Depois de sair da cadeia, tenta refazer a vida em outra cidade e, para escapar ao preconceito, adota um novo nome e um disfarce. Imbuído de bons sentimentos, Valjean se torna um empresário e filantropo, respeitado e admirado por todos. Mas sua vida pregressa, encarnada no policial Javert, acaba por alcançá-lo e obrigá-lo a se confrontar com o passado.
O direito ao esquecimento suscita dúvidas e questionamentos de grande complexidade. Um ex-estuprador que cumpriu sua pena tem o direito de ter os registros sobre seu crime ocultados? Pode-se entender que sim. Afinal, uma vez saldada a dívida com a sociedade, todos devem ter uma chance de recomeçar. Mas alguém que pretenda contratar essa pessoa para uma função de confiança, em que seja necessário cuidar de crianças, por exemplo, não tem também o direito de saber com quem está lidando?
Numa perspectiva mais ampla, pode-se questionar se a possibilidade de os tribunais decidirem o que seja “inadequado”, “impertinente” ou “não mais pertinente” não poderia, na prática, levar pessoas e instituições a tentarem reescrever a história. O que seria da verdade e da democracia se todos — incluindo, obviamente, os homens públicos, que são os maiores interessados em ostentar uma ficha limpa — tivessem o poder de editar sua história pessoal na internet, excluindo tudo aquilo que os constrange ou expõe negativamente?
Essa situação hipotética remete para outro clássico da literatura mundial, o romance 1984, publicado por George Orwell em 1949. Nele, a história e as notícias são permanentemente reescritas pelo Ministério da Verdade, cuja função é assegurar que o governo esteja sempre certo. 1984 é um retrato hiperbólico do que ocorre em regimes autoritários e do que pode ocorrer também na democracia, se a sociedade admitir, ainda que com boas intenções, que o Judiciário deve ter o poder de decidir o que as pessoas podem saber e como as informações devem chegar até elas.
O direito individual ao esquecimento conflita com o direito da sociedade à informação. Sua aplicação, portanto, deve ser restrita a casos efetivamente irrelevantes do ponto de vista do interesse coletivo. Tudo o que possa interessar à história e à sociedade, ainda que cause desconforto a alguém, não deve ser apagado ou esquecido.

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