A história de um crime: o Cerro do Marco como testemunha

Sem qualquer pretensão de revisar os fatos, que agora são história; quero trazer à luz um dos episódios mais pitoresco e de maior originalidade já registrado no cenário jurídico internacional; que marcam com traços típicos, uma forma incomum de aplicar o Direito e fazer Justiça.

A brutal morte do Dr. Waldemar Ripoll, conhecido caudilho santanense dos anos 30, representou um dos acontecimentos mais marcantes da vida política de S. Livramento. O Dr. Ripoll, era um notabilizado desafeto político de Flores da Cunha, governador interventor do Estado do Rio Grande. Auto-exilado na cidade de Rivera, com uma dezena de correligionários, Ripoll desde o exílio no Uruguai empreende um veemente e impetuoso combate ao Florismo, e seus adeptos em Livramento. O embate político tem um desfecho tão trágico quanto sinistro. A morte do político exilado em Rivera é encomendada, e a golpes de machado um pérfido sicário contratado, consuma o horrendo homicídio.

A relevância deste acontecimento político, que deu fim à vida do Dr. Ripoll, somente é superada pela fórmula inusitada utilizada pelas autoridades judiciárias para resolvê-lo. Não havia, à época, os diligentes procedimentos rogatórios vigentes hoje, introduzidos pelo MERCOSUL, que autorizam até o uso da internet para dinamizar e superar as barreiras legais que nos separam. Os escassos e lacônicos tratados internacionais da época inviabilizavam qualquer procedimento judicial que, para esta causa, se vislumbrasse aceitável para instruir o processo e tentar desvendá-lo.

A alternativa era a impunidade, ou, encontrar uma fórmula viável de angariar as provas; notórias do outro lado da fronteira, mas inexistentes nos Autos, do lado de cá. Era necessário: inquirir testemunhas e acusados, encobertos pela fronteira infranqueável. Entretanto, como trazer para depor sujeitos que, ao abrigo do seu estado natal, negavam-se a cruzar a linha divisória…?

Assim o cenário. As Justiças de Livramento e Rivera, na caça de uma alternativa para o esclarecimento do selvagem homicídio, protagonizaram um rito processual que seguramente não encontra precedente nos anais da justiça americana. Assim ocorreu:

O juiz de Rivera deslocou-se até a linha divisória e desde ali, em concílio com o Juiz de Santana, realizava o interrogatório dos acusados. O Magistrado perguntava do lado uruguaio, os interrogados, ladeados pelas autoridades brasileiras, contestavam do lado brasileiro. Assim, passo a passo se produziu a inaudita Audiência Internacional.

Logo da oitiva das testemunhas, parecera necessária uma acareação. Esta também foi realizada.

O Dr. Dario Crespo, delegado do Estado do Rio Grande, junto às autoridades judiciais do Uruguai, postados na linha divisória, ao pé do Cerro do Marco, lia as imputações aos acusados. E assim foi a acareação de testemunhas e acusados.

Este momento histórico teve uma platéia privilegiada. Uma multidão que desde as primeiras horas abarrotava por cima e pelo lado do Cerro, enquanto ao pé do Marco, as autoridades querelavam os acusados.

Assim registra a crônica do Jornal da época, Tribuna Popular: “sobre a grama acanhada, os acusados falavam, trêmulos, medindo as palavras que caiam como pesas enormes sobre o divino dia e deixavam vestígio de sangue no ar.”.

Amparado, mais pela geografia que pelo direito, o processo chegou a termo. Os culpados, com suficientes provas foram condenados todos.

O molde legal que se revelara indiferente na fronteira, não encontrara um pretexto para a impunidade, bem cedo então se deixaria preencher por argamassa de elevado teor jurídico. Desde então, seguimos na fronteira a trilha acidentada que nos tropeça com normas processuais ora inconciliáveis, ora impotentes para administrar a realidade, sempre mais rica, que exige imaginação e um bocado indispensável bom senso para resolvê-las.

 

Leonardo Araújo Abimorad

Prof. Direito

Internacional

 

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